sábado, 19 de outubro de 2013

Não tem preço

Não tem preço

   Quando veio abaixo a última parede da casa em ruínas da minha rua, eu não poderia imaginar como minha vida poderia virar do avesso. Eu era uma garota ingrata.
    Os pedreiros remexiam o entulho, eu me aproximei para ver o que encontraram. Eles acharam um pequeno baú pesado, feito de um metal que não conheço. Eles abriram o baú discutindo e combinando dividir “o tesouro” e ficaram muito decepcionados quando viram que eram coisas velhas e infantis: uma boneca de trapo caolha, recortes de jornais, um diário, um lápis com borracha que nunca vi igual e algumas quinquilharias sem valor. Perguntei se poderia ficar com aquilo e eles responderam que o jogariam no lixo.
   Voltei para casa correndo e me tranquei em meu quarto. Passei aquele sábado examinando cada objeto. Há dias, fico olhando a demolição imaginando mistérios, brinquei muito naquele terreno desobedecendo minha mãe.
   Passei um pano úmido nas coisas e as coloquei no parapeito( agora sei o porquê do nome) da janela pegando ar, tudo era muito velho.
   Quando abri o diário, com todo cuidado, quase caí para trás ao ler o ano de 1918!!
   Mamãe me chamou para o almoço, eu reclamei mas fui porque ela ficaria batendo na porta. Engoli a comida, menti que iria estudar e retornei para a leitura virando as páginas com a pontinha da unha. Até que tudo estava bem conservado. Quase 100 anos!!!
   A menina que escrevia tinha a minha idade. Ela começou a escrever depois que seus pais morreram na mesma semana e de uma tal “grippe espanhola”. As palavras são escritas com letras dobradas: anno, grippe, affirma... e outras de forma estranha: victima, contradicção, pharmacia com ph??  “Como debellar a grippe?” -li no jornal- Debellar? Vou procurar no Google!
   Estou lendo de boca aberta, ela escreve com muita tristeza e saudades, está sendo cuidada por uma tia que está grávida e muito nervosa, todos da casa estão com muito medo da tal “grippe”.
   Eu sempre fui muito distraída, vivo de cara para meu celular, não respondo para o porteiro que me cumprimenta, nunca dou beijo e abraço em meus pais quando vou para o colégio, não dou a menor bola para o Bilu que faz a maior festa quando eu chego e vovô e vovó só vejo em aniversários. A menina morre de saudades dessas coisas e me deu vontade de chorar com ela 95 anos depois.
   Fui até minha janela para ver o que ela descreveu como “Espetáculo Primaveril”, minha professora fez o mural da primavera e eu nem liguei... agora, olho tudo florido, é a mesma visão de 1918? Muito bom olhar a natureza, não sabia que era tão bom, tem até perfume!
   Precisei desligar o celular, não queria parar de ler, minha mãe não vai me chamar nem para o lanche.
   A menina está arrumando suas coisas para voltar para a terra de seus avós paternos, só que não escreveu onde fica. Ela está muito triste.
   Ela conta que a tia repete o tempo que tanto os que venceram a guerra quanto os que perderam sofrem agora igual. Como também repete que sua casa deverá parar de ser construída.
      Ao final de seu diário, ela escreve que está torcendo para que o bebê nasça saudável e que seja menina para aproveitar seus brinquedos, planejou deixar seu baú enterrado em um dos pilares da casa. Os nomes já estavam escolhidos, se for menina se chamará Margarida e se for menino Astolfo. Astolfo? Astolfo é o nome do velhinho que fica sentado no mercadinho da esquina, ele dá balas para a criançada do bairro. Gosto dele.
 Será?

    O que aprendi hoje não tem preço, não quero mais ser ingrata com tanta coisa boa que recebo, nem com pessoas legais que conheço. Darei um abraço apertado em minha mãe, esperarei papai com o jornal, domingo visitarei meus avós, colocarei a coleira no Bilu para colher algumas flores e levar para seu Astolfo em agradecimento pelas balas. Agora sou outra e isto é um “facto” !!  

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