domingo, 22 de abril de 2012

                Linhas


“-Ande na linha minha filha” – lembrava das palavras de sua mãe, vovó Sophia, tendo que descer do trem e andar a pé pela falta de luz que a tudo parou.
                Parece que parou até o tempo e fez vovó voltar à sua juventude bem no dia em que saiu do interior cheia de sonhos para chegar no Rio de Janeiro e ir direto para a casa de uma família conhecida dos patrões de sua mãe. Chegou para lavar, cozinhar, cuidar de casa. Em sua terra não tinha mais chance de se tornar alguém, nem comida mais havia.
                Sua mãe foi levá-la para tomar a condução rumo ao seu novo trabalho e despediu-se com esta frase que agora ecoa do passado ao presente, no silêncio dessa procissão resignada que se formara pelos usuários dos trens paralisados pelo apagão (blackout) e que seguia a pé pelos trilhos.
                Não há o que fazer se não andar. O cansaço não importa, e ia arrastando os sapatos nas pedras barulhentas, mas, não barulhentas o bastante para abafar as frases teimosas que chegavam de longe com o mesmo tema.
                “-As letras redondas e as palavras nas linhas” gritava a sua primeira professora com a régua na mão ameaçadora. Por medo, aprendeu a ler e escrever rapidamente.  
                “- Querida mamãe, escrevo-lhe estas mal traçadas linhas para que não se esqueça desta filha em suas orações. A vida aqui também é dura, mas poderei, com meu trabalho, ajudá-los a enfrentar a fome.”
                O sol nasce e vovó já está no trem, o sol morre e vovó vem cochilando no balanço da volta para casa.
                “- Tire uma linha do rapaz no fundo do vagão” vinha outra frase cochichada por uma amiga nos idos dos anos cinquenta.
                O rapaz elegante tornou-se seu marido, como diziam na época: alinhado.
                Quando vovô se foi, vovó chorou olhando a linha do horizonte.
                Ao dar meia noite, toda a família alinhou-se na rua escura. Estávamos aflitos e sem informação sobre a nossa doce velhinha.
                Rezávamos baixinho enquanto um vulto subia a ladeira. Era ela que vinha sorridente , tão imponente e orgulhosa ao ver sua grande família bem formada e alinhada a sua espera.
                Abraçamos vovó com todo o carinho e é certo que ela, na vida, nunca perdeu a linha.  
                Que coisa linda vovó fez, pegou suas memórias, naquela noite, e junto com as linhas dos trens costurou um tecido imaginário até chegar em sua casa conquistada pelo poder dos desafios da vida e sorriu ao ver seu trabalho completo: uma bela família.


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