segunda-feira, 23 de abril de 2012


   
SOS Múmia

           

            O tempo é inexorável.
            Eu que o diga! Não aguento mais esta minha situação estática no museu da Quinta da Boa Vista.
          Aqui estou eu neste esquife de vidro a ver rostos e rostos me admirando durante os dias e isso por tantos anos seguidos.
            Sussurro meu manifesto a quem tiver sensibilidade para entendê-lo, pois o faço por pensamento.
            Fui famoso em vida e venerado por meus súditos até depois de morto. Milhares de anos se passaram até que me tiraram de sono profundo para me darem de presente a um monarca brasileiro. Puseram-me num navio, trouxeram-me para esta terra, quedaram-me nesta Quinta e por pouco tempo me respeitaram.
            Os séculos passaram e meu valor foi esquecido pelo povo a quem me presentearam.
            Não aguento mais essa exposição sem fim, secularmente falando. Acho que todos vocês já me olharam; tanto os moradores quanto os viajantes que pelo Rio de Janeiro passaram. Quem sabe espantados pela minha magreza de múmia ou pela perseverança de existência, porque existo, sim, eu existo. E existo porque penso, mas penso sem estar vivo; não vivo porque não me circula sangue nas veias; não vivo porque não respiro este ar poluído nem convivo com essa gente mesquinha que não respeita suas relíquias e ignoro por que não me enterram...
            Se com chuva já me encharcaram.
            Se com pouco caso já me cuidaram.
            Se com desprezo já me humilharam...
            Não sei por que não me enterram.
            Se a quem fui dado também já é morto e só pela história não sou esquecido, que me ingressem na literatura para que eu ganhe o respeito devido.
            Que os jornais propaguem o descuido desse teto cheio de cupins que protege outras relíquias e não só a mim, o mais rápido ou que ao menos divulguem a notícia, hoje e sempre, para o mundo globalizado de onde convergem olhares críticos: A múmia pede socorro! 
            Ah! Agora, compreendo o porquê não me enterram! ...os olhares críticos...
             


     Jequitibá Rosa 

  

     Meus pés são raízes nesta terra e vi quando eles chegaram.
     No silêncio de nossas matas, com fumaça se denunciaram. Entraram sem pedir licença e ainda nos abençoaram.
     Repito que vi quando nos descobriram, vi quando nos batizaram e também vi quando nos roubaram.
     Senti a dor de nossos nativos com a falta de liberdade e bebi o suor de tantos forasteiros cativos, fruto de tanta maldade.
     Eu vi quando enforcaram aquele que queria nossa independência, como vi também quando negaram o nosso petróleo, nos oprimiram e depois quando nos venderam.
     Vivi por séculos, dois milênios, calado temporalmente falando e sofri por tanta ignorância que não me sai da lembrança.
     Perdi a conta de toda a perda do que iria ficar de herança pros teus. Deus, dê –me esperanças...
     Mas eu vi a mulher se despir e ser presa, o índio vestido sendo queimado, depois quando o mar sujaram e muitas desculpas pediram... eu vi!
     Despeço-me, agora, com os meus pés ardendo em chamas- chorei- com meus galhos erguendo-se aos céus- clamei: perdão por tanta ganância...
     Lamento mas, só posso morrer por ti e pros teus.     
                 

  



domingo, 22 de abril de 2012

                Linhas


“-Ande na linha minha filha” – lembrava das palavras de sua mãe, vovó Sophia, tendo que descer do trem e andar a pé pela falta de luz que a tudo parou.
                Parece que parou até o tempo e fez vovó voltar à sua juventude bem no dia em que saiu do interior cheia de sonhos para chegar no Rio de Janeiro e ir direto para a casa de uma família conhecida dos patrões de sua mãe. Chegou para lavar, cozinhar, cuidar de casa. Em sua terra não tinha mais chance de se tornar alguém, nem comida mais havia.
                Sua mãe foi levá-la para tomar a condução rumo ao seu novo trabalho e despediu-se com esta frase que agora ecoa do passado ao presente, no silêncio dessa procissão resignada que se formara pelos usuários dos trens paralisados pelo apagão (blackout) e que seguia a pé pelos trilhos.
                Não há o que fazer se não andar. O cansaço não importa, e ia arrastando os sapatos nas pedras barulhentas, mas, não barulhentas o bastante para abafar as frases teimosas que chegavam de longe com o mesmo tema.
                “-As letras redondas e as palavras nas linhas” gritava a sua primeira professora com a régua na mão ameaçadora. Por medo, aprendeu a ler e escrever rapidamente.  
                “- Querida mamãe, escrevo-lhe estas mal traçadas linhas para que não se esqueça desta filha em suas orações. A vida aqui também é dura, mas poderei, com meu trabalho, ajudá-los a enfrentar a fome.”
                O sol nasce e vovó já está no trem, o sol morre e vovó vem cochilando no balanço da volta para casa.
                “- Tire uma linha do rapaz no fundo do vagão” vinha outra frase cochichada por uma amiga nos idos dos anos cinquenta.
                O rapaz elegante tornou-se seu marido, como diziam na época: alinhado.
                Quando vovô se foi, vovó chorou olhando a linha do horizonte.
                Ao dar meia noite, toda a família alinhou-se na rua escura. Estávamos aflitos e sem informação sobre a nossa doce velhinha.
                Rezávamos baixinho enquanto um vulto subia a ladeira. Era ela que vinha sorridente , tão imponente e orgulhosa ao ver sua grande família bem formada e alinhada a sua espera.
                Abraçamos vovó com todo o carinho e é certo que ela, na vida, nunca perdeu a linha.  
                Que coisa linda vovó fez, pegou suas memórias, naquela noite, e junto com as linhas dos trens costurou um tecido imaginário até chegar em sua casa conquistada pelo poder dos desafios da vida e sorriu ao ver seu trabalho completo: uma bela família.