Estou aqui no meio da turba efervescente, pulo de braços para o alto como quisesse soltar escamas, não sou peixe, pulo como quisesse voar, não sou pássaro, pulo, pulo. A batida do surdo me contagia, meu coração chega na boca, engulo-o. O tamborim vibra meus pés que se impulsionam no chão, esse som é algo “inescrevível” e é tudo o que eu precisava.
Um mês sem remédios de tarja preta, uma semana sem ligar para a terapeuta dando informações colhidas com minha mãe, há duas horas pensando em qual montanha me isolar da festa mais quente do planeta: o carnaval do Rio e no último minuto decido aceitar o chamado de minhas amigas. Vale tudo. Quero botar meu bloco na rua. Quase fiquei ruim da cabeça, mas sei que não sou doente do pé.
Sinto cheiro de cerveja, chopp, sei lá, eu não bebo, sou natureba, consciente, ecológica, contudo quase pirei no ano passado, e daí neste quero enfiar o pé na jaca bem no comecinho, liberar adrenalina, berrar mesmo sem saber a letra da música, gritarei como um papagaio louco e não calarei nem quando minha voz se acabar, farei mímicas e grunhirei outros sons, suarei todos os meus temores sem pensar na Quarta-feira. Cadê as garotas? Me perdi ou me encontrei?
De repente, numa clareira de gente suada avisto um deus grego que me chamou a atenção por já estar me olhando sentado numa lanchonete. Ele levanta o copo espumante em brinde a mim e eu minha garrafinha de água a ele, mas eis que passa um aglomerado mais denso e a massa humana retira de mim a visão do Olimpo que permanece em minha memória enquanto empurro as pessoas para atravessar a rua e chegar com custo, porém... ele se foi. Quanto tempo levará essa imagem para desbotar, desmanchar de minha mente? Ele era liiindo!!! O que era aquilo? Isto eu sei que é carnaval: imagens em flashes, pulsação, alvoroço, dúvida das horas, do tempo, o que importa é o exato momento... viro-me... é ele, o deus, está a um palmo de meu nariz, sorrimos, gargalhamos e ele me solta um “hi!”, desmancho o sorriso, não falo inglês e “the book is on the table” não me servirá, e agora? Franzo a testa e ganho um beijo. Nossas línguas portuguesa e inglesa se entenderam muito bem. Ele me diz que não fala português, eu entendo isso. Sentamos e ficamos nos olhando nos olhos longamente, parece que fiquei surda por instantes, não ouvia só sentia, nos demos as mãos e pulamos durante horas.
Ele tenta sambar , leva jeito, rodopia mostra molejo, porém dobra a ponta dos pés e saltita o frevo pernambucano, tá valendo; eu esnobo meus passinhos aprendidos com meu avô cearense de Sobral que era totalmente duro de cintura, mas foi ele o meu querido professor de samba. Não estamos fazendo feio não. Quando chega o empurra–empurra nos agarramos nos punhos temendo a correnteza, somos um casal “sui generis” sem celular!Pra quê ?
Dei tanta importância às interpretações de traumas infantis que por acaso teriam causado minhas inseguranças, tanta importância à palavra falada e escrita que não parei para atentar nos gestos, no tato, no cheiro, no sentimento de prazer, no afeto...
Comecei a pensar qual dos países de língua inglesa, mais próximos de nós, poderia ser o dele.
Nossos adereços carnavalescos são muito loucos: eu (de cabelo lavado e largado) resolvi pegar peças coloridas, de cada década passada no armário de minha mãe retornando aos anos setenta, e ele veste uma camiseta do super-homem, sandália baiana de couro cru, um relógio de camelô, gigante, branco e parado ao meio dia; não havia um simbolismo específico, mas resultou em uma homenagem às diferenças e à liberdade de escolha.
Ele me perguntou: “- where are you from?” ‘; isso eu sei, afinal leio legendas desde sempre, respondi apontando para o chão e antes que ele me contasse onde mora, beijei-o, isso vai doer, isso é carnaval, puro exercício de desapego, ninguém é de ninguém, tudo que é bom dura pouco e o fim é na quarta-feira.
Ele bebeu água de coco como se fosse a última, gritou e gargalhou como se fosse um príncipe, comeu um milho verde como se fosse o único e deitamos no chão como pacotes flácidos, ufa! Engraçado, ou não, o espaço entre as pessoas está aumentando, as ruas estão alargando, o dia está clareando, e nós não nos cansamos de nos olhar nos olhos, em nossos rostos, queremos decorar cada traço. A curiosidade em saber quem somos, o que fazemos, guardamos, seria importante? A química era perfeita, e o que queríamos era não desgrudarmos mais, mas em meio a algumas palavras que ele teimava em pronunciar eu ouvi “Austrália”. Não podia crer que minha alma gêmea iria para o outro lado do planeta.
Minhas amigas me encontraram e se aproximaram timidamente. Compreendendo que é chegada a hora da despedida , nossos corpos foram se separando até sobrarem nossos dedos indicadores que não queriam se soltar. Repetimos o abraço e o beijo, trocamos papeis escritos com carvão de churrasqueira, demos o derradeiro beijo e entrei no carro de minhas amigas que temiam um surto psicótico. Fiquei olhando para ele até sua imagem desaparecer e comecei a rir um riso frenético, minhas amigas mudas e espantadas, eu que havia pensado tanto nas palavras para traduzir pensamentos e identificar traumas, concluí a felicidade traduzida em beijos.